Quem hoje em dia se senta em frente à TV
experimenta uma sensação antiga e nova ao mesmo tempo. O motivo que levava
romanos às arenas e leva ainda hoje os espanhóis a touradas, brasileiros a
rinhas de galo, americanos à luta livre, foi modificado pela sensação de paz
muito próxima do atordoamento que sempre foi prometida pela representação
ficcional em geral. Quem quer assistir à guerra, à violência, à miséria, quer
também que seu voyerismo – seu insano desejo de ver – esteja protegido e que
seu corpo não esteja ameaçado. Espera ver algo real, mas protegido pelo como
se fosse real. A promessa das artes, da literatura, do cinema e do visual
em geral foi a de que seria possível apreciar a violência ou o horror, porém,
sem se envolver com ela, ficar em paz. A televisão superespecializou esta
possibilidade.
A distância que temos do real e do atual (o mundo material e de relações compartilhado) é produzida pela escrita, pelo teatro, pela arte em geral. A fotografia e o cinema enquanto funcionaram em preto e branco deixaram clara a separação entre a ficção e a realidade. O que era imagem estava “preto no branco” literalmente. Esta distância permitia “pensar criticamente” o que era visto. Tratava-se de imagem e isto era claro. Hoje, sob o paradigma da videosfera inaugurada com a Tv colorida nos anos sessenta, é possível dizer que “vejo e logo existo” ou que só existo porque vejo. A promessa de paz que a representação produzia, por ser representação e não realidade, inaugurou um problema novo, bem antigo, porém, na filosofia: o que é o real? A confusão entre visual e real só existe porque o olhar se tornou incompetente, mas isso porque talvez ele tenha sido por demais enganado. O olhar regrediu?
A televisão é o ápice de um processo de evolução
dos mecanismos óticos e de representação que culmina com o estágio atual da
regressão da visão. Assim como muitos não sabem ler, há tantos outros que não
sabem ver. Se o espectador não for ajudado a ver a diferença entre ele mesmo e
o que ele vê, entre a vida real e atual e o que é representado na tela da
televisão, ele corre o risco de se tornar uma distorção real do que ele mesmo
contempla. A idéia oriental de que cada um se torna o que contempla pode ajudar
a pensar o estágio atual de nossa inabilidade em ver. A televisão neste caso é
uma anamorfose, ou seja, uma imagem que precisa de um olhar cuidadoso, que
conheça o ângulo próprio para conhecer o mecanismo, para mostrar sua verdade.
É o estatuto da imagem e da realidade que a
televisão hoje coloca em xeque ao por em cena uma programação “ao vivo” ou que
“parece” ser ao vivo, que simula a instantaneidade do tempo. Não se trata
apenas de tentar responder à pergunta “quem sou eu enquanto vejo televisão”,
mas de entender o que faz uma coletividade abdicar de tantas outras atividades
para ver televisão sendo que constantemente a programação da TV também não
atende às suas expectativas? Se a idéia básica de que meu desejo foi seqüestrado
numa sociedade das imagens não responde a tudo, será que é pela entrega à
visualização que eu adquiro o direito muito mais interessante, o de ser
inativo? Que lucro será este?
É valioso, neste ponto, recuperar a questão de
Vilém Flusser sobre o desinteresse das pessoas pela vida real em função da
avalanche das imagens no seu modo de vida contemporâneo. Será que se espera que
as imagens possam restituir algo que perdemos e nem sabemos que perdemos? Nós
mesmos, nossa complexidade, nossa intimidade, nossos segredos. Será que como na
antiguidade o desejo de ver o horror na tragédia grega que nos ensinava a
pensar na própria vida equivale ao desejo de devassar a vida alheia justamente
porque perdemos nossa interioridade e esperamos recuperar algo nosso de
autêntico em migalhas sempre ofertadas em programas “espontâneos” e “ao vivo”?
Até que ponto quem vê televisão é vítima desta
ilusão? Ver televisão hoje é um modo de se emocionar imediatamente numa
sociedade que perdeu de vista o cuidado com sua própria sensibilidade. Uma
sociedade que se alimenta intelectualmente da visualização da miséria e da
violência como se elas pudessem sanar alguma falta pessoal ao modo das hienas
que se alimentam das sobras não comidas pelos leões. Com isto é preciso que se
diga que o espectador precisa ser ajudado a ver e isso só é possível se lhe
forem dadas as chances para que abra os olhos.
***
A promessa da televisão para o espectador foi
complexa. Ao lado da paz proveniente da ação de ficar diante da máquina
colorida que simula o real e atual, quem assiste também presencia um conteúdo
especial e comum à história humana desde aqueles tais tempos imemoriais que
nada mais são do que a barbárie que conhecemos tão bem ainda hoje. As imagens
da violência, habituais ao meio, não são gratuitas. Explicar a audiência do
sensacionalismo pelo desejo de sangue e violência não é fácil, por que talvez a
questão não seja o desejo de violência, mas a falta de outro desejo que anime a
vida. Por isso, a inércia diante da TV talvez não seja mera busca de
entretenimento, farra e festa, mas ao contrário, desconhecimento de outras
possibilidades. E isso define que a forma TV talvez possa ser mudada pela
modificação de seu conteúdo.
O conteúdo se faz como forma, a ela pertence. O
principal conteúdo da TV para o povo é a violência: a violência física que se
pode “contemplar” ou violência simbólica que só se pode absorver
inconscientemente. O pequeno gesto de sentar-se diante do aparelho exige um
auto-abandono à inércia, misto de contemplação infecunda e ócio físico que dá
muito prazer. A isso se chama entretenimento. Com ele nossa cultura cansada de
si mesma tece o elogio da sua própria aniquilação. Nenhuma grande experiência
espiritual é proposta num meio como a TV porque já não é possível se pensar
nisso desde que “entreter” e fazer passar o tempo com a rapidez de uma vida que
não quer saber de si, são sinônimos. A própria TV já é fruto da tecnologia que
previu a decadência do humano, ele mesmo a grande invenção que cai por terra
diante do avanço da técnica.
A indolência diante da TV é uma caricatura da paz
que o filme promovia ao jogar o espectador no mundo sempre mais confortável do
irreal, da ficção como objeto de contemplação por oposição às dores e horrores
da vida real. Aquela função benevolente do espetáculo para amainar as
consciências tem outro papel na TV que, quanto mais pretende ser
entretenimento, menos promete a ficção. O que ela vende é “o real” que promete
substituir o real doloroso da vida mesmo oferecendo um real ainda mais doloroso.
A única saída para o espectador é descobrir seu próprio estatuto. A tarefa da
televisão é ser honesta com quem nela presta atenção preservando a inteligência
necessária antes que a atenção seja eliminada socialmente e diante de aparelhos
apenas sobrevivam os que não se importam em ser robôs.
Quem vê televisão precisa saber que se trata apenas
de televisão e que isto é muito sério.
* Publicado na Revista Ponto Tv do Jornal do Brasil n. 26 de 06 de maio de 2007 (p. 7) e n. 27 de 13 de maio de 2007 (p.7).
* Publicado na Revista Ponto Tv do Jornal do Brasil n. 26 de 06 de maio de 2007 (p. 7) e n. 27 de 13 de maio de 2007 (p.7).
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