15.6.12

Preferências





Eu preferia o tempo do medo
nos olhos de meus inimigos
pois hoje os vejo mais violentos
em mentiras, ironias, hipocrisias e farsas.

Eu preferia o tempo da construção
 dos meus castelos de areia, de gelo e de sal,
hoje assisto temeroso, a descontrução das virtudes,
do respeito e do bem natural.

Eu preferia a audiência das vozes respeitosas,
das bençãos serenas, da verdade no olhar,
hoje assisto estarrecido as gritas perigosas,
as vozes jocosas de um mundo amoral.


J. Carvalho


Pablo Neruda


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito. 
O vento da vida pôs-te ali.

A princípio não te vi: não soube
que ias comigo, até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito, 
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

14.6.12

O que nos alimenta







Ao Poeta, o verso publicado
Ao Compositor, a melodia executada
Ao Cantor, a sua voz em coro repetida
Ao Ator, a interpretação e as palmas

Ao Professor, a aula elaborada
Ao Estudande, a lição entendida
Ao Escritor, o livro editado
Ao Editor, a edição esgotada

Ao Fotógrafo, a imagem inédita realizada
Ao Pintor, a tela com a paisagem retratada
Ao Padre, a celebração da oração adorada
Ao Fiel,  a gratidão a Deus pela vida alcançada.

Ao Lavrador, a colheita esperada
Ao Construtor, a obra concluida
Ao Pedreiro, as paredes levantadas
Ao Médico, a cura prometida.

Ao grande amor, a paixão correspondida
Ao Viajante, a cidade alcançada
Ao Cientista, a pesquisa bem sucedida
Ao Astronauta, a estrêla conquistada.


J. Carvalho














6.6.12

Por que ver Televisão hoje? ( Marcia Tiburi)


Quem hoje em dia se senta em frente à TV experimenta uma sensação antiga e nova ao mesmo tempo. O motivo que levava romanos às arenas e leva ainda hoje os espanhóis a touradas, brasileiros a rinhas de galo, americanos à luta livre, foi modificado pela sensação de paz muito próxima do atordoamento que sempre foi prometida pela representação ficcional em geral. Quem quer assistir à guerra, à violência, à miséria, quer também que seu voyerismo – seu insano desejo de ver – esteja protegido e que seu corpo não esteja ameaçado. Espera ver algo real, mas protegido pelo como se fosse real. A promessa das artes, da literatura, do cinema e do visual em geral foi a de que seria possível apreciar a violência ou o horror, porém, sem se envolver com ela, ficar em paz. A televisão superespecializou esta possibilidade. 

A distância que temos do real e do atual (o mundo material e de relações compartilhado) é produzida pela escrita, pelo teatro, pela arte em geral. A fotografia e o cinema enquanto funcionaram em preto e branco deixaram clara a separação entre a ficção e a realidade. O que era imagem estava “preto no branco” literalmente.  Esta distância permitia “pensar criticamente” o que era visto. Tratava-se de imagem e isto era claro. Hoje, sob o paradigma da videosfera inaugurada com a Tv colorida nos anos sessenta, é possível dizer que “vejo e logo existo” ou que só existo porque vejo. A promessa de paz que a representação produzia, por ser representação e não realidade, inaugurou um problema novo, bem antigo, porém, na filosofia: o que é o real? A confusão entre visual e real só existe porque o olhar se tornou incompetente, mas isso porque talvez ele tenha sido por demais enganado. O olhar regrediu?
 
A televisão é o ápice de um processo de evolução dos mecanismos óticos e de representação que culmina com o estágio atual da regressão da visão. Assim como muitos não sabem ler, há tantos outros que não sabem ver. Se o espectador não for ajudado a ver a diferença entre ele mesmo e o que ele vê, entre a vida real e atual e o que é representado na tela da televisão, ele corre o risco de se tornar uma distorção real do que ele mesmo contempla. A idéia oriental de que cada um se torna o que contempla pode ajudar a pensar o estágio atual de nossa inabilidade em ver. A televisão neste caso é uma anamorfose, ou seja, uma imagem que precisa de um olhar cuidadoso, que conheça o ângulo próprio para conhecer o mecanismo, para mostrar sua verdade. 

É o estatuto da imagem e da realidade que a televisão hoje coloca em xeque ao por em cena uma programação “ao vivo” ou que “parece” ser ao vivo, que simula a instantaneidade do tempo. Não se trata apenas de tentar responder à pergunta “quem sou eu enquanto vejo televisão”, mas de entender o que faz uma coletividade abdicar de tantas outras atividades para ver televisão sendo que constantemente a programação da TV também não atende às suas expectativas? Se a idéia básica de que meu desejo foi seqüestrado numa sociedade das imagens não responde a tudo, será que é pela entrega à visualização que eu adquiro o direito muito mais interessante, o de ser inativo? Que lucro será este?
 
É valioso, neste ponto, recuperar a questão de Vilém Flusser sobre o desinteresse das pessoas pela vida real em função da avalanche das imagens no seu modo de vida contemporâneo. Será que se espera que as imagens possam restituir algo que perdemos e nem sabemos que perdemos? Nós mesmos, nossa complexidade, nossa intimidade, nossos segredos. Será que como na antiguidade o desejo de ver o horror na tragédia grega que nos ensinava a pensar na própria vida equivale ao desejo de devassar a vida alheia justamente porque perdemos nossa interioridade e esperamos recuperar algo nosso de autêntico em migalhas sempre ofertadas em programas “espontâneos” e “ao vivo”?  
 
Até que ponto quem vê televisão é vítima desta ilusão? Ver televisão hoje é um modo de se emocionar imediatamente numa sociedade que perdeu de vista o cuidado com sua própria sensibilidade. Uma sociedade que se alimenta intelectualmente da visualização da miséria e da violência como se elas pudessem sanar alguma falta pessoal ao modo das hienas que se alimentam das sobras não comidas pelos leões. Com isto é preciso que se diga que o espectador precisa ser ajudado a ver e isso só é possível se lhe forem dadas as chances para que abra os olhos. 


***
A promessa da televisão para o espectador foi complexa. Ao lado da paz proveniente da ação de ficar diante da máquina colorida que simula o real e atual, quem assiste também presencia um conteúdo especial e comum à história humana desde aqueles tais tempos imemoriais que nada mais são do que a barbárie que conhecemos tão bem ainda hoje. As imagens da violência, habituais ao meio, não são gratuitas. Explicar a audiência do sensacionalismo pelo desejo de sangue e violência não é fácil, por que talvez a questão não seja o desejo de violência, mas a falta de outro desejo que anime a vida. Por isso, a inércia diante da TV talvez não seja mera busca de entretenimento, farra e festa, mas ao contrário, desconhecimento de outras possibilidades. E isso define que a forma TV talvez possa ser mudada pela modificação de seu conteúdo. 
 
O conteúdo se faz como forma, a ela pertence. O principal conteúdo da TV para o povo é a violência: a violência física que se pode “contemplar” ou violência simbólica que só se pode absorver inconscientemente. O pequeno gesto de sentar-se diante do aparelho exige um auto-abandono à inércia, misto de contemplação infecunda e ócio físico que dá muito prazer. A isso se chama entretenimento. Com ele nossa cultura cansada de si mesma tece o elogio da sua própria aniquilação. Nenhuma grande experiência espiritual é proposta num meio como a TV porque já não é possível se pensar nisso desde que “entreter” e fazer passar o tempo com a rapidez de uma vida que não quer saber de si, são sinônimos. A própria TV já é fruto da tecnologia que previu a decadência do humano, ele mesmo a grande invenção que cai por terra diante do avanço da técnica. 
 
A indolência diante da TV é uma caricatura da paz que o filme promovia ao jogar o espectador no mundo sempre mais confortável do irreal, da ficção como objeto de contemplação por oposição às dores e horrores da vida real. Aquela função benevolente do espetáculo para amainar as consciências tem outro papel na TV que, quanto mais pretende ser entretenimento, menos promete a ficção. O que ela vende é “o real” que promete substituir o real doloroso da vida mesmo oferecendo um real ainda mais doloroso. A única saída para o espectador é descobrir seu próprio estatuto. A tarefa da televisão é ser honesta com quem nela presta atenção preservando a inteligência necessária antes que a atenção seja eliminada socialmente e diante de aparelhos apenas sobrevivam os que não se importam em ser robôs. 
 
Quem vê televisão precisa saber que se trata apenas de televisão e que isto é muito sério.



* Publicado na Revista Ponto Tv do Jornal do Brasil n. 26 de 06 de maio de 2007 (p. 7) e n. 27 de 13 de maio de 2007 (p.7).