29.7.19

Vida

Vida
Carrego no meu corpo
Uma vida já gasta
Cansada!

Onde as minhas rugas
São o meu mapa
A minha história
Nas minhas mãos
Trago o meu suor
A Minha dor
A minha Glória
Carrego nas costas
O meu trabalho árduo
O meu sustento
O meu afago
E mesmo assim peço a Deus
Que a minha vida não acabe
Porque é nos meus olhos
Que todos os dias volto a nascer
E um dia, irei morrer

José Guterres

26.7.19

A montanha pulverizada



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A montanha pulverizada
(Carlos Drummond de Andrade)


Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
Era coisa de índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é a sua vista a contemplá-la.
De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.
Esta manhã acordo e não a encontro,
britada em bilhões de lascas,
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões,
no trem-monstro de 5 locomotivas
– trem maior do mundo, tomem nota –
foge minha serra vai,
deixando no meu corpo a paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.


 (Carlos Drummond de Andrade)

12.7.19

DORME JOÃO

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"Dorme, João." O fim do mundo segundo a atriz Maria Ribeiro, que escreve em O Globo, bem pra danar:"Hoje é dia dez de julho e Deus morreu há quatro dias. Em casa, a poucos metros do violão, no Brasil do avesso da poesia, no metro quadrado que ele fez de pátria, o tempo pediu Silêncio pro coração do maior artista brasileiro. Sim, Silêncio. Com maiúscula.

Falemos baixo, escreveu Adriana Calcanhotto. Sussurremos, continuo aqui. Cantemos pra dentro. Dancemos pra si. Rezemos desafinados, e, principalmente, atualizemos nosso vocabulário. “Avarandado”. “Estate”. “SWonderful”. “Falsa baiana”. “Chega de saudade”. “Águas de março”. Na Rua Nascimento Silva, em um salão de beleza a uma quadra do número 107 da Elizeth, pintando as unhas de vermelho e trocando mensagens de amor pelo celular, recebi, às quatro horas da tarde do último dia seis, a notificação do fim do mundo: “morre, aos 88 anos, o cantor João Gilberto”. Era sábado.

De lá pra cá, na esteira dessa frase, vieram outras, todas apocalípticas, todas violentas, todas em voz mansa. Morre, aos 519 anos, a Terra Brasilis. É extinto, depois de 2019 verões, o calendário gregoriano. Foi descoberto esse conjunto de terras que um dia foi batizado Vera Cruz. Chega ao fim, pra sempre e sem a anestesia do “eterno enquanto dure” do Vinicius, o futuro do samba. É demolido, depois de lenta agonia, o que restava do Leblon. Aliás, não só ele. Junto ao sono do João, findam também um Rio de Janeiro, a Bahia e o resto de beleza que morava, já de favor, nessa terra de palmeiras. Falemos baixo, por favor.

Eu sei, ainda temos Caetano. E Gil. E Chico. E Jorge, Tom Zé, Gal, Bethânia, e tantos outros. Nossa música é nossa bandeira, já dizia alguém. Nossa cura do câncer. Nosso casamento sem dor. Nosso colo de mãe, nossos filhos com saúde, nossa palavra certa num momento de desespero. É nossa música quem, há anos, vela, com bondade, as cinzas do nosso futebol. É graças à bossa nova que continuamos respirando, ainda que por aparelhos, depois do que vimos, no último domingo, pela televisão ou ao vivo, na tribuna do Maracanã.

Mas isso agora não importa. João morreu, e eu queria deixar esse espaço em branco. João morreu, e eu queria que as escolas colocassem as crianças pra ouvir “Amoroso”. João morreu, e eu queria chorar. João morreu, e eu queria agradecer. João morreu, e eu queria pedir perdão. João morreu, e eu queria perdoar. João morreu, e eu queria ter fé. João morreu, e eu queria pedir Silêncio. Com maiúscula. O Brasil tá dormindo, João. Tô cantando “Estate” enquanto o país cochila no colo do meu amor, os olhos fechados, um vento balançando meu cabelo.
Dorme, João."